#1 | Falar de comida em terra de fome
Sobre o preço da carne, a volta à miséria, outras Carolinas e como ter alguma esperança
Foi um mês intenso e eu nunca sei direito como começar as coisas. Mas, aqui estamos! E, se você recebeu esse e-mail de outra pessoa e ficou interessade, considere se inscrever e continuar recebendo esse conteúdo Orgânico.
Falar de comida em terra de fome
Bate um desânimo, sabe?
Como a gente fala de comida com naturalidade enquanto esta, que deveria ser para todos, abundante, sobretudo em um país tão vasto e produtivo, falta tanto em tantas mesas?
O preço da carne não me sai da cabeça. Assim como não me sai da cabeça aquela fala estúpida do ocupante da cadeira presidencial sobre o feijão e o fuzil. Não me sai da cabeça o número de pessoas que, hoje, vivem em situação de extrema pobreza.
Outros números que martelam também em minha mente são, em um contraste cruel e estúpido, o de novos bilionários no país. Li um dia desses uma frase que viralizou: ninguém deveria ser tão rico que pudesse gastar bilhões em 10 minutos de viagem no espaço e ninguém devia ser tão pobre que não tivesse espaço para morar.
Lembrei de quando a Catedral de Notre-Dame pegou fogo, em abril de 2019. Quão rápido a pequena parcela de bilionários que ocupa esse planeta se mobilizou para doar (muito) dinheiro para a reconstrução da igreja? Quão rápido essa mesma gente poderia resolver questões de vida ou morte de gente que não tem o que comer nem onde encostar a cabeça?
Comecei, pelo menos três vezes, um outro texto para publicar aqui, no qual eu falo sobre a grande quantidade de pessoas que vestiu verde e amarelo no último feriado para pedir por coisas de que ninguém precisa, quando tem muita gente bem ao lado delas precisando de muita coisa de verdade, como comida, emprego, vacina, um pouco de vida.
Nesse ponto, eu penso em Carolina Maria de Jesus, que, em 1958, escreveu em seu diário, mais tarde publicado em 40 países:
… O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora.
Quem passa fome aprende a pensar no próximo, e nas crianças.
Carolina, mulher negra, que vivia na favela do Canindé, em São Paulo, sonhava em viver de livro, mas vivia de catar papel para ganhar alguns trocados, trocar por ossos para fazer sopa, coisa que, mais de sessenta anos depois, vejam vocês, voltou a ser comum - jamais normal - porque a carne de segunda hoje custa quase quarenta reais.
Carolina tinha uma imensa desconfiança de políticos. Dizia que eram os Vicentinos quem ajudava os pobres. Estes, pesquisei, são uma comunidade católica de leigos que se dedicam à caridade com o propósito de aliviar o sofrimento do próximo, algo bastante parecido com o que Cristo disse que a igreja devia fazer.
Algo que contrasta muito com o que têm mostrado os que repetem à exaustão que colocam deus acima de tudo.
Carolina viveu uma realidade muito parecida com a que tem se manifestado atualmente, principalmente no último ano e meio. Gente que vivia em casa de alvenaria voltou a morar em barraco ou na rua. Gente que chegou a fazer três refeições por dia voltou para a fila do osso. Gente que viu os filhos chegarem à universidade agora os veem desempregados e desesperados.
Ela não viveu para ver o momento em que tudo começou a dar certo e que deu certo de verdade por algum tempo. Não assistiu, como eu assisti, à notícia de que o Brasil saiu do mapa da fome, segundo a ONU.
E como é que foi que viemos parar nesse ponto novamente?
Está me doendo bastante escrever sobre comida quando tanta gente tem ido dormir de barriga vazia porque o preço da carne pesa e não tem coisa que esses idiotas queiram mais do que um quilo de feijão.
Por outro lado, me anima lembrar que comida também é esperança. Quando refleti sobre os motivos que tenho para escrever sobre este tema, elenquei minhas três paixões: a literatura, o esporte e a comida, porque essas três coisas mudam a vida, e, delas, a mais importante é a comida.
Porque é de barriga cheia que se escreve, que se lê, que se faz livros, que se pratica esportes.
E ontem, engasgada de vergonha e angústia nesse país sufocado, o vídeo de voluntários em um estande da Central Única dos Trabalhadores (CUT) distribuindo sacolas fartas de alimentos orgânicos na manifestação pró-democracia realizada no Vale do Anhangabaú, em São Paulo, acendeu essa chama de esperança de novo.
Não era bem assim que eu pretendia dar os primeiros passos aqui no Orgânico, mas os tempos que se têm passado exigem que se fale, que se dê nome ao que está acontecendo e aos bois, responsabilizando os responsáveis por esse abismo.
Orgânico nasceu de uma sede por realidade no mundo virtual, longe dos algoritmos, longe do que move as máquinas que puxam o real para baixo. Uma sede por contato, por levar boas ideias, criar diálogos de um jeito que a comida é completamente capaz de fazer - essa é sua especialidade, aliás.
Orgânico veio para falar de comida de verdade com gente de verdade e sobre pessoas que trabalham a favor da verdade na luta contra a fome e pela dignidade na vida de tantas outras Carolinas - de Jesus.
Por falar em verdade
No último mês, O Joio e o Trigo publicou esse fantástico livro de receitas sem Nestlé. Por quê? Para quem não conhece, este é um portal de jornalismo investigativo que trata de alimentação, saúde e poder. E, no Brasil de 2021, não dá para falar dessas três coisas sem citar alguns nomes, como Nestlé e Coca-Cola, por exemplo.
O livro foi publicado como um manifesto que tem o propósito de reinventar… Não, recuperar a culinária e a confeitaria originais do Brasil, restaurando, nela, o sabor e as tradições familiares dentro da cozinha. De maneira mais lenta, talvez, mas muito mais divertida, aconchegante e - por que não? - orgânica.
Para entender melhor sobre toda essa coisa que envolve os grandes nomes da indústria de alimentos e as relações de poder existentes no meio disso tudo, recomendo, também, o podcast Prato Cheio, produzido pelo Joio.
Por falar em doce
Recomendo fortemente o Instagram e o blog da Carolina Garofani, que foi minha colega no curso Como escrever sobre comida. Aqui, ela fala de confeitaria e, nas últimas semanas, tem falado sobre erros que muitos não somente cometem, como também disseminam nessa área. Vale a pena conferir!
Por falar em esperança
A newsletter da Flávia Schiochet, Fogo Baixo, trouxe um dos textos que mais me trouxeram esperança no último mês. Sabe aquele calorzinho no peito quando a gente mais precisa. Assinem e confiram!
Mais comida!
Meu amigo Arthur Marchetto lançou, na última sexta-feira, o primeiro episódio de sua Ponto Nemo. Aqui, ele falou de cogumelos, ilustração científica e literatura. É uma edição capaz de tocar vários públicos e, certamente, vale muito a pena assinar e acompanhar nas próximas semanas!
Anilamesa
No último mês, reativei meu blog sobre… comida. Comecei com um relato bem sincero sobre o meu retorno a essa área que me aquece e faz com que eu me sinta tão bem, viva e inteira. Assim como aqui, por lá também vamos devagar, com uma história de superação ou uma receitinha de vez em quando. Fiquem à vontade para acompanhar!
O Orgânico é uma newsletter mensal que tem como propósito falar sobre comida de verdade, limpa e acessível sem a influência dos algoritmos. Gostou? Compartilhe!