#10 | Quando o inverno chegar eu quero estar respirando
O céu não tem estado tão lindo, Tim.
Ano após ano fico atenta àquele dia em meados de agosto em que os cientistas afirmam mais uma vez que a Terra chegou ao limite e que, literalmente, daqui para frente é só para trás. Que a humanidade já esgotou todos os recursos e que a situação do planeta é irreversível. Da primeira vez, me desesperei. Depois, já estava conformada. Demorei a entender, no entanto, que não há uma ação individual que faça diferença agora. Já era.
Há alguns anos, saí de uma consulta médica em São Bernardo por volta das 15h e parecia noite. Achei que era chuva. Na minha cidade natal, era comum que, nesse horário, houvesse neblina encobrindo os prédios em frente ao que eu morava, eu achava bizarro.
Mais tarde nesse dia, descobri que aquela escuridão era da fumaça que vinha das queimadas na Amazônia. Foi a segunda vez em que eu me senti figurante do fim do mundo. A primeira foi quando a Organização Mundial de Saúde (OMS) decretou estado de emergência sanitária, no ano anterior.
Era março e eu estava no Texas. Começou a primavera e eu, leitora de Krenak, entendi que não era o mundo que ia acabar, mas sim nós. Porque as flores continuaram nascendo e os gramados, florindo, enquanto milhares de pessoas morriam. É horrível, eu sei, mas sinto uma esperança em pensar que o mal desse mundo vai acabar e que as coisas bonitas vão seguir, independente de nós.
Naquele ano, vivi duas primaveras porque quando finalmente voltei ao Brasil era quase agosto e setembro chegaria outra vez.
É primavera de novo e eu estou participando de um clube de escrita da Escola de Escritoras. Não tem nada mais primaveril, em qualquer estação do ano, nada mais florido do que um grupo de mulheres que se reúne semanalmente para semear palavras e colher um bocado de arte.
Na semana passada, véspera do início da nova estação, a proposta de escrita tinha a ver com isso e eu escrevi alguma coisa. Diferente da canção de Tim Maia, hoje o céu não está tão lindo. Aliás, há algum tempo não está. Se não é a fumaça das queimadas no interior, que sufocaram a nossa casa por quase um mês, são as nuvens de uma chuva que nunca cai. Mas é primavera. E quando o inverno chegar, quero que estejamos todos bem.
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Quando o inverno chegar eu quero estar respirando
Adquiri o hábito de andar olhando para cima porque não quero perder uma copa florida das árvores na minha cidade. É difícil pra mim, que não sou botânica e passo longe das ciências biológicas, entender os ciclos da floração das árvores, sobretudo o ipê.
Aqui, bem pertinho de casa, temos o raríssimo ipê-damasco, cujas flores enganam em sua cor, ora cor-de-rosa, ora amarelas, dependendo do ponto de vista, da proximidade, da luminosidade do dia.
No caminho entre a minha casa e a casa do meu pai, passo pelo cemitério, onde tem um dos meus exemplares favoritos, um ipê-rosa. Gosto de olhar para cima e, quase sempre, de fotografar, se dou sorte, o rosa das flores em contraste com o azul do céu, quando acontece de o céu estar azul – não tem acontecido.
O problema é esse. Não tem acontecido.
É raro que os eventos característicos da chegada das novas estações, no cenário pré-apocalíptico, senão já de fato apocalíptico, em que estamos vivendo aconteçam na época em que têm que acontecer, mas, veja bem: as flores dificilmente falham.
Em meados de agosto já começo a ver o ipê-damasco dando as caras e este evento dura não muito mais do que alguns instantes. É raro, no sentido mais puro da palavra, no sentido de que precisamos aproveitar, nos deleitar, observar, fixar os olhos e, se possível, fotografar para ter o registro de que aquela árvore realmente existe e de que ela aconteceu naquele ano.
No ano passado, não aconteceu – parecia um prenúncio.
Quando setembro chega, dentro de mim, é uma festa. Ano passado foi, também, mas alguns dias antes da chegada da primavera, uma das flores mais bonitas do meu jardim da vida ressecou, morreu. Num instante, como a florada do ipê-damasco, da noite para o dia, minha avó descansou o sono eterno que, no fim de uma vida cansada, ela merecia. Ano passado não teve primavera.
Mas as flores renascem, certo? Na verdade, as flores nunca morrem. Já ouvi há muito tempo que para dar vida à luz, as sementes primeiro precisam morrer. E assim se dá um ciclo sem fim. O que ficou da minha avó está aqui. Está comigo, com minha mãe, minha tia, minha prima. E cada uma de nós, com o talento que herdou dela, vai dar continuidade à sua vida até que não mais estejamos também.
E quanto ao céu, quanto ao apocalipse, a premissa é a mesma. Parei de temer há alguns anos, quando entendi que houve vida ontem, antes de nós e que depois de amanhã, depois de nós, haverá também. Porque a natureza é cíclica e pode levar muitos séculos para recuperar tudo o que destruímos, mas haverá vida de novo, como houve muitas vezes antes.
Enquanto o mundo acaba, porém, eu quero apreender o máximo de vida que estiver ao alcance dos meus olhos, das minhas mãos, das minhas lentes e ainda ver beleza nas coisas. No ipê-rosa na frente do cemitério – onde a vida acaba, a vida também começa –, nas flores que despencam das árvores e colorem as vias cinzentas da cidade cada vez mais cinza.
Vai haver cor amanhã de novo, apesar do cinza, apesar de nós.
O que tenho lido?
Minha amiga estava desapegando de uns livros e eu fiquei com Estamos bem, da Nina LaCour porque gostei da capa. Pra mim, livros de capa azul brilham, principalmente em contraste com os outros, na estante, e a capa desse é mesmo muito bonita. Quando soube sobre a história, me interessei mais ainda.
Estou chegando ao final do livro com um monte de emoções. É uma história de amizade, uma história de amor, uma história de cuidado. Um livro cheio de tristezas e talvez até por isso, tão bonito. Estamos bem foi publicado em 2017 pela Plataforma 21.
Antes disso, li Não pise no meu vazio: ou o livro do vazio, da Ana Suy. Não costumo curtir muito personalidades que surgem e se tornam fenômenos da web, mas os títulos da Ana são bem interessantes e meu interesse pela psicanálise, o qual carrego há dez anos, está bastante intenso. É um livro lindo. Ela o descreve como um manifesto de amor à escrita e foi exatamente o que eu senti. Este livro foi publicado pela Editora Planeta.
Em relação às newsletters, continuo lendo — e recomendando — a Jangada (em mar aberto), da Gabi, e a Ponto Nemo, do Arthur. Neste mês, a Nina Spim publicou sua senhora evermore, criando mais um espaço seguro, confortável, aconchegante desse lado mais lento e calmo da internet.
O que tenho feito?
Finalizei a primeira versão do livro que escrevi ao longo do Desafio 90/90 da Escola de Escritoras. Foi um desafio, mesmo. Imenso. Mas deu certo! Agora, o trabalho é um pouco maior, mais intenso, mas também vou conseguir. É hora de reler, reescrever, editar. Tudo com calma. Ninguém está com pressa aqui.
Mas tem mais. Inscrevi De mãos dadas como projeto de obra literária inédita na Política Nacional Aldir Blanc (PNAB) pela minha cidade. Também inscrevi um projeto de oficina de leitura. Aguardo o resultado de ambas as propostas.
Minha oficina de escrita Palavra: substantivo feminino se encerrou no último dia 12. Agora vamos reunir tudo o que as participantes escreveram ao longo dos encontros para editar um livro que publicaremos pelo KDP como contrapartida do projeto. Sei que vai ficar lindo, porque, já disse, não tem nada mais primaveril do que um grupo de mulheres que se juntam para escrever.
Agora, enquanto finalizo esta entrada, a chuva começou a cair fininha. O céu não está tão lindo, mas sei que essa chuva será boa enquanto ela durar.
Vocês podem me encontrar no instagram nilamaria.doc, canal que criei exclusivamente para compartilhar minhas experiências como escritora e agente cultural.
Agora também posso ser encontrada como NFLeiga, porque eu assisti a um jogo do meu time de futebol americano no estádio e voltei a esse lugar em especial, de onde não devia ter saído. Aí, no Instagram e no Threads, eu comento algumas partidas do esporte, principalmente do meu Philadelphia Eagles.
Até a próxima!
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nossa, eu amo ipês! quando eu morava em porto alegre, eu confundia os jacarandás com os ipês haha. sempre amei ipês amarelos, pois me lembram a minha avó materna. não sabia da existência dos ipês-damascos e achei-os lindossss! nunca vi um! adorei as fotos ilustrativas! <3
Nila, não me surpreendi ao ver que estamos sintonizadas em relação ao tema dessa semana. É isso, me sinto de novo figurante do fim do mundo! A questão é, sabendo disso, como buscar ainda a felicidade (que é pra mim ainda a forma mais disruptiva de luta contra o sistema). Aaah, obrigada pela recomendação, significa muito ❤️🩹