A edição de hoje traz um ensaio pessoal que foi gestado ao longo de um mês. Nunca tinha parado para pensar muito sobre o meu processo de escrita. Para mim, escrever sempre foi simples e nenhum trabalho até agora tinha sido lapidado por semanas até chegar a um resultado satisfatório.
Não me lembro de ter aprendido isso na faculdade de jornalismo. A gente sempre pensa no hard news, nas entregas “pra ontem”, e toda a minha trajetória profissional até agora exigiu de mim apenas o cuidado com a otimização.
Participei, nesse último mês, do Clube de escritas gastronômicas, organizado pela Flávia Schiochet, do Fogo Baixo e, ao lado da Elisane do Sabor das Emoções e da Thárin, do Ativismo Alimentar, experimentei a fermentação lenta de um texto. E como foi incrível!
O ensaio que apresento a seguir tem muito de mim e de todo o trajeto que me trouxe de volta à cidade onde cresci. Espero que saboreiem!
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Êxodo
Desde que comecei a enxergar os momentos como efêmeros e tudo bem, passei a ter mais consciência dos exatos instantes e contextos em que as ideias e os sentimentos surgem. Por exemplo, o desejo de (talvez, um dia, depois de formada) voltar para o interior me cativou quando eu estava num ônibus intermunicipal, uma rota pouco usual para mim e, sei lá por que, digitei “criar galinha em apartamento” no Google, só para ver o que acontecia.
Isso foi em 2017 e eu estava dando passos mais largos em pesquisas pessoais sobre alimentação. Tinha acabado de me iniciar na panificação caseira e minha rotina me permitia fazer feira de verdade às quintas-feiras à noite após o trabalho. À época, comecei a considerar deixar de lado a faculdade de Jornalismo e começar a cursar Gastronomia. Não o fiz; hoje entendo que foi o melhor.
Não me lembro dos resultados que encontrei nessa pesquisa absurda, mas minha única motivação foi o desejo de saber o máximo possível sobre a origem e o caminho percorrido pelo que chega ao meu prato.
Mas a vida seguiu. Não que eu tenha simplesmente abandonado minha vontade de estudar comida e de me alimentar bem, mas com o tempo, a rotina começou a sufocar muita coisa em mim. Com a mudança do meu local de trabalho, ir à feira às quintas à noite se tornou inviável, e o tempo no ônibus me consumia e desgastava. Algumas noites, confesso, meu jantar foi coxinha do Ragazzo que ficava no meu caminho e que, sem orgulho nenhum, muitas vezes comia ali mesmo enquanto meu ônibus não chegava.
O meu lado que despertou no dia da pesquisa sobre a criação de galinhas em apartamento seguia vivo, porém desanimado pelo dia a dia. Ganhou força um lado mais conformado, vivendo o que tinha e fazendo o possível: dispensando canudos e copos plásticos, evitando ultraprocessados, usando ecobags no mercado; o mínimo.
Bem pouco, na verdade. Já fazia um tempo que eu não questionava tanto o trajeto da comida até meu prato.
Naquele percurso barulhento em um ônibus com manutenção defasada, eu entendi que o caminho de volta podia ser interessante.
Esse também tem sido o pensamento de muitas outras pessoas desde o início da pandemia de SARS-CoV-2, em março de 2020. Já em junho daquele ano, especialistas apontavam para a tendência ao êxodo urbano em diversas metrópoles em todo o mundo e também no Brasil, especialmente em São Paulo.
Uma reportagem do InfoMoney, datada de junho de 2020, mostra dados do mercado imobiliário sobre a queda nas buscas e vendas de imóveis na capital paulista - principalmente apartamentos - desde o início da crise sanitária, e o aumento em 340% na procura por casas em cidades com mais de 100 km de distância da cidade de São Paulo na comparação entre janeiro e maio daquele ano.
A pesquisa também mostra uma tendência no aumento de buscas por casas em bairros ou condomínios: em janeiro de 2020, a procura representava 0,5% do total na plataforma de compra e aluguel ZAP Imóveis. O percentual em maio subiu para 2,2%.
Após mais de um ano de isolamento total e trabalhando em regime remoto, meu companheiro e eu decidimos entrar para as estatísticas que começaram a se confirmar após a publicação dessa reportagem, com pessoas resolvendo migrar pela possibilidade de trabalhar em casa ou motivadas pelo desemprego, sem falar no custo de vida cada vez mais sufocante na capital.
Um dia, já cansados do barulho dos passos da vizinha do andar de cima na hora de dormir e dos caminhões na avenida 24 horas por dia, apontei no mapa uma cidadezinha que me era muito familiar e que remonta lembranças boas de uma infância feliz: Jarinu.
Minha família e eu saímos de São Bernardo do Campo em 1998 para viver nessa cidadezinha, que fica a 73 km de São Paulo e, à época, tinha pouco mais de 17 mil habitantes, o que representa, aproximadamente, a população atual do bairro do Pari, que figura entre os menos populosos da capital.
Era a cidade típica do interior: todo mundo se conhecia e sabia o que o outro estava fazendo; tinha pouquíssimo entretenimento aos finais de semana: no máximo ir a uma das duas pizzarias ou encontrar os amigos na praça da Matriz e, para fazer qualquer coisa que fugisse do corriqueiro, como ir ao cinema ou comprar roupas para um evento e até uniformes escolares, era necessário ir a Jundiaí ou a Itatiba, suas vizinhas.
Jamais passou pela minha cabeça voltar, mas, naquela tarde, em um intervalo do trabalho, descobri algo de que já suspeitava nas minhas raras visitas à cidade: ela cresceu e segue expandindo.
As ruas que percorri até os 12 anos estão revitalizadas, as calçadas mais amigáveis e a praça da Matriz, totalmente renovada após o tornado que atingiu a cidade e a despedaçou, em 2016.
Novos comércios ocupam as ruas. Movimentados, tocados por gente que tem vontade de fazer parte desse crescimento. Naquela tarde descobri uma livraria em Jarinu, coisa que nunca antes houve, e também um empório que vende produtos naturais a granel.
O algoritmo do Instagram percebeu meu interesse (mesmo antes de eu colocar os pés na cidade) e começou a me apresentar outros espaços e nomes: um projeto de agrofloresta, cervejarias artesanais, uma fazenda de leite com animaizinhos criados soltos no pasto.
Com brilho nos olhos, em um momento em que eu voltava a pensar na alimentação como campo de estudo, minha vontade de saber exatamente de onde vem o que entra no meu prato começava a ganhar sentido.
Batemos o martelo alguns meses depois, quando encontramos uma casa verde com jardim e duas palmeiras bem no centro da cidade. Na mesma época, li, no livro O frango ensopado da minha mãe, de Nina Horta, o texto intitulado Férias em Santos, no qual ela conta memórias sensoriais do período de sua infância em que ficava hospedada em uma pensão familiar no Litoral Sul de São Paulo que também tinha uma palmeira no jardim.
Segundo a autora, esta era da espécie Cica e, com a chuva e a maresia, tinha um cheiro muito característico que, para ela, remetia ao curry. Fiquei extremamente curiosa a respeito do aroma que essa palmeira emanava.
Mudamos para Jarinu em um dia de chuva no final de outubro. A última vez em que eu estive na cidade foi no primeiro dia deste ano, acompanhando meu pai na cerimônia de diplomação dos vereadores eleitos na eleição municipal de 2020. Antes disso, fotografei o mesmo evento no início de 2017 - era essa, basicamente, a minha frequência por aqui.
Naquela noite, depois de termos começado a, na medida do possível, arrumar nossos móveis entre todas aquelas caixas, com a chuva ainda caindo, senti o cheiro. Não sei se era curry. Não sei se era o mesmo cheiro que a Nina Horta sentia e que seus leitores, no capítulo seguinte, diziam sentir. Na verdade, não tenho certeza se as palmeiras são as mesmas; já pesquisei e os resultados da busca por imagens não correspondem à descrição da tal da Cica. Mas eu senti um cheiro bom.
Um cheiro inédito, doce e suave despertado pela chuva e que, de alguma forma, me acolheu. Um cheiro de casa.
Mudamos em um feriado prolongado e tivemos algum tempo além do que a nossa rotina de trabalho permite que tenhamos para descansar e explorar o nosso novo mundo.
Foi fácil, inclusive, perceber que este era um novo mundo. Tive muita facilidade para dormir logo nos primeiros dias, depois de meses de insônia e anos de barulho ao redor. Consegui acordar cedo com facilidade e com ainda mais facilidade perceber que isso permitiria que eu aproveitasse mais o tempo e a claridade que entra pelas janelas, junto com o cheiro das palmeiras e o ar mais puro que respiramos nos últimos cinco anos.
Percebi, também, a sensação de que, aqui, o tempo passa mais devagar, ao contrário dos meus pés, que demoraram a notar que, por essas ruas, a pressa não é necessária. Aqui não tem engarrafamento, o descompasso das buzinas e o desespero dos freios nas vias apinhadas de veículos e pessoas a qualquer hora do dia.
É tranquilo. Quase silencioso. Escutamos vozes, latidos, passarinhos. É claro que os carros fazem barulho e o escapamento das motos também, mas o ponto é a frequência. Não existe a sensação de que todos os automóveis do mundo querem romper o tempo e o espaço para chegar na hora a qualquer lugar.
É sim um novo mundo, e isso obviamente reflete em nossos hábitos e práticas diárias. Há um mês, para ir a qualquer lugar, fosse o shopping mais próximo da nossa casa ou ao supermercado onde costumávamos fazer nossas compras, por diversas razões, como a localização fora de mão para as linhas de ônibus e a distância, precisávamos aguardar um Uber e gastar com isso. Aqui, isso sequer é uma opção, e nem precisaria ser.
Moramos a dez ou quinze minutos - ou até menos - de qualquer lugar onde precisamos ir no dia a dia e, por mais cansativo que fosse no início, se mostrou outra mudança positiva nos nossos hábitos, afinal, andar é bom. Para voltar, temos que encarar algumas subidas, bastante presentes nessa região, e isso também tem sido positivo.
Entendo sim que essas coisas logo deixarão de ser novidade; não demora até que deixem de empolgar. Chegarão os dias em que eu vou pensar duas vezes antes de sair, pensando nas subidas que terei de enfrentar na volta e eu me conheço. Sei que nem tudo será sempre flores, mas há algum tempo eu decidi acolher o efêmero pelo tempo que ele durar e aproveitar até o fim.
Por mais corriqueiras que as coisas se tornem daqui a um tempo, amanhã ou em dois anos, prometi a mim mesma que não quero e não vou deixar de me encantar com as abelhinhas de mel que dançam para mim e são atraídas pelo meu café na janela do escritório, nem pelos besouros que polinizam as palmeiras e as florezinhas do jardim, nem o cheiro que sobe à noite em dia de chuva ou nas tardes de calor.
Saí do interior há quase seis anos com a ideia de que na capital encontraria diversas possibilidades de lazer, uma facilidade muito maior de conhecer lugares e pessoas. E foi assim por um tempo; aquela versão de mim não estava enganada. Mas três semanas aqui me fizeram ver que o que mudou ao longo desses nem tantos anos foram, na verdade, as minhas prioridades.
A chave girou naquele dia em que pensei em criar galinhas em apartamento, naquela época em que comecei a questionar o trajeto do alimento até o meu prato. É possível sim ter essas preocupações e consciência na capital e buscar um estilo de vida mais orgânico e saudável, mas pelo menos no tempo em que estive lá não tive algumas das experiências que, em um espaço tão curto de tempo, tive por aqui.
Por exemplo, conhecemos a Fridays Bier, uma cervejaria artesanal que funciona na casa de um engenheiro que, em apenas algumas horas de conversa, virou nosso amigo. Ele explicou todo o processo de preparo da cerveja, que definiu como um verdadeiro “ato de cozinhar”. Contou sua história e sua história com a fabricação da bebida e, mais do que isso, falou sobre os ingredientes e sua procedência. O lúpulo, inclusive, orgânico, é produzido aqui na cidade.
E eu soube ali mesmo que era exatamente isso que eu estava buscando. Conheci quem enche meu copo de cerveja e todos os processos que levam meu copo a ficar cheio.
Ainda não completamos um mês aqui e eu já provei mais pratos de restaurantes locais do que nos meus cinco anos em São Bernardo. Visitei o restaurante de um casal de amigos antigos da minha família, onde servem comida com gosto de casa. Arroz e feijão, legumes, carne de panela. Tempero na medida certa. Comida quente. Casa.
Entrei em dois restaurantes que funcionam hoje onde antes funcionavam as duas principais pizzarias da cidade - uma delas, que foi do meu avô. Não deu para evitar reviver diversos momentos naquelas instalações. Subir as escadas de uma delas me fez praticamente visualizar a mesa enorme com todos os meus amigos da escola reunidos após alguma festinha de fim de ano para um rodízio. A outra obviamente me fez pensar no meu avô e em como seria legal se ele pudesse me ver voltando.
Já provamos três feijoadas diferentes, dois hambúrgueres diferentes da mesma hamburgueria, pastéis de duas barracas da feira e de uma pastelaria, provamos a comida japonesa e o poke, e, claro, pizza. As experiências têm sido agradáveis.
Às sextas-feiras no final da tarde, vamos ao mercado. Tem uma excelente variedade de produtos e o hortifruti é bom. Mas gostamos mesmo é de ir à feira no sábado de manhã. As subidas enormes com sacolas pesadas valem a pena para manter aquela minha versão de quatro anos atrás mais viva do que nunca.
Devo confessar que, apesar da proximidade dos restaurantes e das possibilidades que ainda não tive a oportunidade de provar, tenho gostado muito de cozinhar em casa. Um dos principais motivos é o fato de meu pai almoçar aqui todos os dias durante a semana, proximidade que tem me feito muito bem. E tem algo melhor do que a comida para demonstrar e agradecer?
Um dia desses, antes de começar a trabalhar, mudei totalmente o cardápio que tinha planejado para o almoço e, no embalo de arrumar a geladeira, lavei todos os tomates comprados na feira de duas semanas atrás e uma pimenta americana e bati no liquidificador. Fiz molho para pelo menos três macarronadas.
Encontrei variedades diferentes de feijão na feira: o andú e a fava rajada, inéditos para mim. Aprendi com o vídeo de uma senhorinha em um canal de agroecologia no YouTube uma excelente receita dessa fava.
Cozinhei quinoa e servi com tirinhas de frango, lentilha vermelha e saladinha de pepino com tomate. Preparei uma salada de moyashi com shoyu e um refogado de moyashi com cogumelos.
Estes, aliás, não podem faltar na nossa geladeira. No mercado onde fazemos as compras encontramos bandejas muito bem recheadas de shiitake, shimeji, portobello e paris. Descobri na semana passada, conversando com um casal formado por um professor de História aposentado e uma artista plástica que expõe suas obras no mundo todo, que o produtor desses cogumelos é da cidade!
Em algum momento deste ano, li O livro de Líbero, de Alfredo Nugent Setúbal. A obra também foi um pouquinho responsável por me fazer pensar em cidade e interior, mas eu me identifiquei com o protagonista, Líbero, por alguns outro motivo: a fome. Fome de vida, de aproveitar todas as coisas, provar todos os sabores, ler todos os livros, conhecer todas as pessoas, elaborar todas as entrevistas; essa pressa de viver.
Olho para o jardim e tenho pressa de plantar todas as flores; recolho o lixo e anseio pela composteira que agora cabe na casa; visito a livraria e quero me envolver nos projetos; conheço novas pessoas e penso nas infinitas possibilidades de conversas que não consegui ter nos poucos minutos que passei com elas - como se não houvesse depois.
Pensando nisso foi que notei que não foram só os meus pés que ainda não aprenderam a andar devagar, mas a minha cabeça ainda não se convenceu de que o próximo final de semana não será o último que tenho para aproveitar a cidade e que nem tudo precisa acontecer já. Embora algumas caixas ainda estejam espalhadas pela casa e as malas estejam encostadas em um canto do quarto, não estou de saída e não vou: essa casa e essa cidade são o meu lar agora.
Em vinte e sete anos vivi em três cidades. Embora tenha nascido em São Bernardo e seja lá que os meus mais fortes laços se estabeleceram, nos últimos cinco anos, em nenhum momento consegui reconhecê-la como lar, chamá-la de minha. O mesmo com Itatiba.
Por alguma razão que eu desconheço, embora aparentemente esteja no caminho de entender, sempre teve algo aqui que fazia com que eu me referisse a Jarinu como minha cidade. E agora, percorrendo essas ruas, olhando para toda essa gente, entrando nessas casas, olhando a paisagem e sentindo os aromas, sinto que sou e gosto de ser daqui.
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A última edição da newsletter da Flávia fala de processo de escrita. Ela publicou um áudio falando sobre isso, um pequeno episódio de podcast perfeito para os amantes das palavras. Adorei escutar e me ver ali. O trabalho da Flávia com os cursos que ministra tem sido inspirador.
O meu amigo Arthur, no episódio seis da Ponto Nemo, falou sobre o cultivo e a coleta de cogumelos comestíveis. Está uma delícia!
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