Porque esse texto está engavetado nos meus arquivos desde fevereiro e eu procurei uma revista para publicar e não encontrei, ou não procurei o suficiente. Mas, principalmente, porque um dia desses foi o Dia das Mães e, pela primeira vez nos meus trinta anos, ela não estava aqui. A minha avó materna.
Também porque eu coloquei na minha cabeça que, enquanto eu viver, vou fazer arte com sua memória e porque o luto vem me ensinando muitas coisas ao longo dos últimos sete meses, desde quando ela se foi — essa é uma delas; essa coisa de fazer arte com a memória.
Ela gostava disso. Ela gostaria disso. O ensaio a seguir tem cheiro de lavanda, mas também tem cheiro de canela, bolo recém-saído do forno, e tem o calor de um último abraço que não aconteceu.
O ensaio a seguir tem as letras e o tom de Virginia Woolf com sua escrita tocante, com a angústia do fim de sua vida e a fibra de um inseto que brigou pela vida até o fim em uma manhã de meados de setembro. Assim como ela. Este ensaio é sobre força. É sobre minha avó, Virginia Woolf e a mariposa.
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A MARIPOSA, VIRGINIA WOOLF E MINHA AVÓ
Virginia Woolf escreveu “A morte da mariposa” em 1941. A Segunda Guerra Mundial havia começado dois anos antes e o horror era parte do cotidiano europeu.
Para Virginia, os horrores pessoais também estavam presentes. Desde os 13 anos de idade, a autora sofria com crises depressivas e surtos de mania e psicose e, entre janeiro e março daquele ano, o momento em que se lembrou da morte do frágil inseto provavelmente sinalizava o prenúncio de um novo episódio de depressão.
Ela se lembrou de uma manhã de meados de setembro que tinha um clima agradável e ameno que fugia da normalidade para a estação pela brisa que, para ela, parecia “mais cortante do que a dos meses de verão”. Todo o mais, segundo a lembrança de Virginia, “as gralhas, os lavradores, os cavalos e até mesmo, assim parecia, as colinas de costas nuas”, seguia seu ciclo normal, cada um fazendo e sendo o que deveria ser à época, alheios aos horrores externos, do mundo, e externos, da autora.
Também a mariposa.
Virginia relata que o inseto tinha a mesma energia que manifestavam todos aqueles seres viventes naquela manhã de meados de setembro, mesmo que estivesse limitando a si mesma a “esvoaçar de um lado para o outro no seu quadrado da vidraça”. A autora conta que os movimentos que aquela mariposa diurna fazia na ocasião carregavam um enorme entusiasmo “em aproveitar ao máximo as suas oportunidades minguadas”.
Isso, para ela, parecia ridículo, uma vez que aquela era uma manhã de meados de setembro em que o clima estava agradável e que o mundo que ainda existia oferecia a ela infinitas possibilidades. Mesmo assim, “apesar do tamanho das colinas, da amplidão do céu, da fumaça das casas ao longe e da voz romântica, vez ou outra, de um vapor do mar”, a mariposa se deleitava com tão somente um quadrado da vidraça.
Mesmo assim, Virginia reconheceu que aquilo a que assistia “não era nada, ou quase nada, além de vida” e que “havia nela qualquer coisa ao mesmo tempo maravilhosa e patética”,
“Era como se alguém tivesse arrancado uma minúscula gota de pura vida e a enfeitado muitíssimo de leve com penugem e penas, depois a enviado para dançar e ziguezaguear, a fim de nos mostrar a verdadeira natureza da vida”, ela diz.
Por fim, a autora conta que, depois de um tempo, a mariposa ficou cansada e o espetáculo acabou; Virginia se esqueceu dela. Mas, quando levantou os olhos do livro que lia, ali estava ela, tentando buscar forças para continuar sua dança, agora desajeitada, com as pernas rígidas e já sem condições de atravessar seu quadrado de vidraça com a mesma disposição de momentos antes.
Virginia conta, enfim, que foram sete as tentativas de se reerguer que a mariposa teve antes de cair sobre as próprias asas na parte de madeira da janela. A escritora até tentou ajudá-la, com seu lápis, mas foi inútil: “o fracasso e a falta de jeito eram a morte se aproximando”.
Já era meio dia e tudo o que se agitava quando a mariposa começou seu baile havia se aquietado e estava imóvel. Suas perninhas continuavam se movimentando “contra uma sina que se avizinhava e poderia, se quisesse, submergir uma cidade inteira”.
Virginia encerra seu ensaio dizendo que “A mariposa, agora aprumada, jazia serena com grande decência e sem se queixar. Ah sim, parecia dizer, a morte é mais forte do que eu”.
Em março do ano em que narrou a luta de uma mariposa de dia pela própria sobrevivência após um praticamente eterno baile em um quadrado de vidraça, Virginia tirou a própria vida porque tinha medo de ter de enfrentar outra crise e se entregou à morte contra a qual nada, ela mesma sabia, “tinha a menor chance”.
A vida de Virginia Woolf e a curta vida da mariposa que a autora observou naquela “manhã agradável de meados de setembro, amena e benigna, mas com uma brisa mais cortante do que a dos meses de verão” me fizeram pensar em outra manhã de meados de setembro em que, assim como a mariposa de Virginia, a minha avó materna, com toda a sua força e fragilidade, brigou, mas também não pôde contra a morte.
Assim como naquele dia, em que havia toda uma vida ocorrendo nas vésperas do outono do hemisfério norte, a vida acontecia sem freio às vésperas da primavera do hemisfério sul, no século XXI. Outra guerra acontecia do outro lado do mundo e minha avó, com toda a delicadeza de uma mariposa de dia, também não resistiu.
Frágil como a mariposa, mas com uma vida mais longa do que a de Virginia, minha avó, que nasceu no mesmo ano da morte da autora, teve a bravura, resiliência e fé que somente algumas mulheres são capazes de nutrir ao longo da vida, e ela nutriu.
O trecho final do ensaio de Woolf, que mencionei mais acima, descreve com perfeição a percepção que eu mesma tive sobre a morte da minha avó, que também “jazia serena com grande decência e sem se queixar”.
Assim como Virginia, minha avó também deixou muitas coisas escritas, que vão me alimentar — literal ou figurativamente — de um jeito ou de outro para sempre.
Depois da morte da mariposa, de Virginia, da minha avó, a vida teve de continuar com mais dias amenos e setembro virá outra vez. Cada um de nós — Leonard, os lavradores, os cavalos, as gralhas, minha família e eu — tivemos de continuar caminhando, mas o que a gente leva de tudo isso, do piscar de olhos que é a vida e de cada momento até aqui e daqui em diante é o que importa, e o que é que a gente leva?
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Não há previsão de quando as águas vão baixar e estima-se que, nos próximos dias haja ainda mais chuvas, além do frio. Sendo assim, os moradores das cidades atingidas precisam de alimentos, remédios, produtos de higiene pessoal básica — não se esqueçam dos absorventes para as pessoas que menstruam — e o calor de roupas em boas condições e cobertores.
As agências dos Correios de todos os municípios brasileiros estão recebendo e enviando doações, além das associações comerciais das cidades e muitos outros centros de coleta. Incontáveis instituições de boa-fé estão recebendo doações financeiras para contrinbuir com a população gaúcha.
Abaixo, deixo as chaves PIX de algumas instituições que têm dedicado seus dias a acolher e trabalhar em prol das famílias que foram afetadas diretamente por esse caos. Todas as chaves já foram verificadas, então é seguro fazer sua doação. Só lembre de conferir todos os dados antes de concluir a transação.
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Todas essas instituições e contatos foram disponibilizados pela PEITA, que produz camisetas que promovem o empoderamento feminino com variações da frase “Lute como uma garota”, que você já deve ter visto em algum lugar. Elas são de Curitiba/PR e estão engajadas em ajudar aos vizinhos. Escolhi esta lista porque são instituições nas quais eu acredito e confio.
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