Um final de semana bastou para que eu entendesse que entre o plantio e a colheita muita coisa pode acontecer debaixo e em cima da terra. E, dessas coisas, as que acontecem em cima da terra podem ser surpreendentes e aterradoras, porque a vida nem sempre é gentil com a gente. Assim como, nem sempre, a própria terra, as estações e as intempéries são gentis com as sementes. E pode ser, sim, que elas não vinguem.
No último ano, desde a minha última entrada nesta newsletter, minha família e eu vivemos terremotos de magnitudes altíssimas e minha bússola pessoal perdeu a conexão com o campo magnético da Terra mais vezes do que sou capaz de contar. Não é surpreendente que eu tenha encontrado novas paixões e, na mesma medida que me perdi, eu tenha me encontrado novamente em outras coisas um milhão de vezes.
Mas um final de semana foi suficiente para me reconectar com diversas razões e motivos por que eu estou aqui e por que eu sou.
Só o que consegui pensar nos últimos três dias é que é necessário esperar pelas coisas que acontecem embaixo da terra, o que quer que aconteça. E eu entendi assim que ainda há coisas acontecendo embaixo da terra, mas que, talvez, a hora de colher esteja mais perto do que nunca.
E entendi, também, que é bem possível que o que eu vá colher nas cenas dos próximos capítulos não tenha nada a ver ou tenha muito pouco a ver com o que eu acreditei ter plantado na semeadura. Mas o que eu sei é que eram sementes que eu estava jogando nesta terra que escolhemos, e ela é muito fértil.
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Colheita
Entre os dias 10 e 12 deste mês, a prefeitura, por meio da Secretaria de Cultura, Turismo e Lazer de Jarinu, promoveu a primeira Festa da Colheita da cidade. O evento teve o objetivo de promover a cultura agrícola do interior. Foi um festival gastronômico e cultural que recebeu, desde a tarde de sexta-feira, atrações como teatro e dança, apresentações musicais e atividades voltadas para o público infantil.
Além disso, a festa contou com um espaço especial que recebeu o nome de Tenda Comida e Cultura do Interior. Neste, foram ministradas oficinas, workshops e rodas de conversas com produtores locais, chefs de cozinha e pesquisadores de cultura gastronômica.
Não preciso nem dizer nada, não é mesmo?
Sexta-feira: Neide Rigo e o encontro entre três versões de mim
Na sexta-feira, Carlos e eu participamos de uma oficina sobre Plantas Alimentícias Não Convencionais (Pancs) com Neide Rigo. Para começo de conversa, esse é um assunto que me encanta desde que comecei a reparar que talvez os matinhos que crescem no nosso jardim não fossem apenas mato, mas comida.
Para bem antes de pensar em começar essa conversa, na verdade, precisamos falar sobre Neide Rigo e sobre a versão de mim construída em 2017, o ano em que eu lancei as primeiras sementes deste Êxodo. Nutricionista formada pela USP, Neide é autora do blog Come-se. Neste, ela publica receitas variadas que passam por geleias, hommus, pães e vão até sabão preparado com aproveitamento integral de alimentos, como caroço de abacate, por exemplo.
Lá atrás, quando eu queria criar galinhas em apartamento, conheci Neide Rigo não sei como. Lembro que assinei sua newsletter e, periodicamente, recebia convites para participar de suas oficinas de pães rústicos, que eram realizadas em São Paulo, o Pão na City. Estudando e estagiando, nunca tive a possibilidade de participar de nenhuma delas, mas seguia feliz de receber e-mails cujo assunto era “Você foi convidado por Neide Rigo para participar do evento pãonacity”. Achava tão íntimo!
Depois de mais umas duzentas versões de mim, voltei a pensar em comida desse jeito e reencontrei a Neide nas redes sociais pouquíssimo tempo antes de virmos para Jarinu. Agora, sentia que estávamos ainda mais próximas e estávamos, mesmo.
Foi assim que eu adiantei todo o meu trabalho e também posterguei outros (posterguei tanto que, ao digitar esta frase, interrompi brutalmente a escrita porque lembrei que tinha uma revisão para entregar até as 14h – deu tudo certo) para estar na oficina com essa mulher que é uma das minhas maiores referências.
Foi como se as minhas versões de 2017, 2021 e 2023 tivessem se encontrado, ficado surpresas com as mudanças todas dos vendavais da vida, a falta de rega em alguns cultivos, o excesso de cuidado com outros e, ainda assim, admiradas com o fato de que, nesse ponto a que chegamos, ainda consigamos colher alguma coisinha.
Sábado: mudança de planos e colo de vó
No sábado, Carlos Dória, da Escola do Gosto, falou sobre culinária e cultura caipira em outra roda de conversa na Tenda Comida e Cultura do Interior. Dessa vez, não pude comparecer, mas foi por mais um dos motivos por que este fim de semana foi muito especial.
Fomos visitar minha avó paterna, que completou 84 anos de vida e muita força e muita fé. Ela me esperou com um refratário cheio da maionese que tem o mesmíssimo sabor da minha infância. Como isso é possível? Como isso é incrível e poderoso!
Um dos terremotos que abalaram minha família no último ano foi a perda da minha avó materna. As coisas acontecem embaixo e sobre a terra sem que nós estejamos preparados e, de fato, nunca estamos, nunca estaremos. Mas essas coisas acontecem embaixo e sobre a terra, talvez, para nos ensinar alguma coisa. Minha avó viveu 82 anos de muita força e fé, também.
Quando acontecimentos fraturantes como este chegam, talvez cheguem para nos fazer dar muito mais valor a quem ainda está aqui. E eu me comprometi a cuidar da minha avó paterna com muito carinho.
Passar a tarde do último sábado com ela celebrando sua vida, ensinando coisas que, para a minha geração, são muito simples, escutando histórias, assistindo a vídeos de assuntos que a interessam, ouvindo conselhos e a vendo se emocionar com as notícias das outras coisas que têm acontecido sobre a terra foi insubstituível. Não reviveria esse sábado em qualquer outro lugar.
Domingo: primeiros brotos da colheita começaram a despontar
Eu cheguei a essa conclusão enquanto almoçava com o Carlos. Nós chegamos aqui no final de 2021 com um propósito e infinitas ideias. Eu cometi um erro que não foi inédito para mim: tentei abraçar não o mundo inteiro, mas a cidade de Jarinu, o que é bem grande para a extensão dos meus braços. Semeei e esperei que os frutos já estivessem disponíveis na manhã seguinte e que história é essa?
Os terremotos aconteceram me fazendo perder de vista muitos dos propósitos pelos quais viemos para cá. Eu perdi de vista muito do que acreditei e tinha como princípio, como ideal. Como falei lá em cima, no comecinho, vivi mil e uma versões de mim e me aproximei de uma com a qual estou gostando demais de conviver, que veio para ficar.
Assistir ao movimento que começou a acontecer na nossa cidade neste fim de semana me fez olhar para o meu companheiro e dizer que é agora que nós vamos começar a colher o que plantamos quando chegamos. E chegamos, juntos, à conclusão de que vamos estar bem se o fruto da nossa colheita não se parecer em nada com o que imaginávamos das sementes que lançamos sobre essa terra muito fértil, porque será o que ela mesma preparou para nós.
No último ano, o maior de todos os terremotos aconteceu e trouxeram meu irmão e meu pai para bem perto de nós, para dentro da nossa casa. Foi exatamente esse o mais fraturante de todos os acontecimentos, mas o que mais ensinou a cada um de nós individualmente e, particularmente, me mostrou que foi justamente para isso, para fazer do nosso lar o lar do meu irmão, onde ele voltaria a caminhar e nós dois começaríamos o melhor momento da nossa amizade, que nós viemos para cá. Nada acontece sem motivo.
Com isso, no último ano, minha mãe, que morava há quase dez mil quilômetros de mim, passou a morar a quinze minutos a pé da nossa casa. A comida dela, sobre a qual falei tantas vezes nas poucas entradas nesta newsletter, agora estão acessíveis não somente para nós, mas para toda a cidade, porque ela também lançou algumas sementes e sua terra pessoal sempre foi a mais fértil de todas – regada a muita fé, também.
Ao mesmo tempo em que acontecia a Festa da Colheita, minha mãe expunha alguns de seus pratos a poucos metros dali, na Feirinha do Giordano. Na semana passada, ela já apresentou seus produtos em uma feira exclusiva de empreendedorismo feminino. Orgulho é o nome. Gratidão, também. É uma sensação indescritível a de ver as coisas dando certo para aqueles a quem a gente ama mais do que tudo.
No último ano, mudei de trabalho algumas vezes e comecei uma nova faculdade. Participei de diversas oficinas de escrita e, ontem, cheguei à conclusão de que, talvez, minhas sementes sejam mesmo palavras e minha horta seja a escrita; sou uma agricultora de textos e ideias.
Entre essas oficinas, uma em especial me apresentou diversas obras e autores – sobretudo autoras, na verdade – que têm sido verdadeiros adubos para os meus cultivos e vêm me ensinando e me fazendo acreditar em muitas coisas, como, por exemplo, que eu sou uma escritora, embora eu ainda precise ler, pesquisar, praticar e, acima de tudo, observar e escutar muitas pessoas.
Mais um motivo por que este final de semana foi particularmente significativo demais para mim foi exatamente este: eu parei para ouvir. Ouvir histórias de outras pessoas fora da nossa casa. Há alguns dias concluí que eu podia até tentar fazer alguma coisa com a minha escrita, mas de muito pouco adiantaria se eu não colocasse os pés para fora do terreno que eu divido com o Carlos e, agora, com metade da minha família e assistisse à cidade, às pessoas e as escutasse.
Neste final de semana, eu fiz isso. Escutei a história da Priscila e do Tudo da Terra. Vi muito da minha trajetória na sua e me senti representada de diversas maneiras. Ouvi a história do Sítio Boa Vista e seu papel em tornar o conhecimento sobre laticínios produzidos com respeito aos animais e à saúde do consumidor mais acessível.
A Becky Weltzien também falou sobre sua história e eu ouvi, assim como a Grace, do Terra Matula, que acompanho desde antes de virmos para cá. Aliás, enquanto ela falava, fui me lembrando do quanto projetos como o dela me surpreenderam, marcaram e foram fundamentais para que eu sentisse que voltar era a coisa certa. Que, aqui, eu teria condições de saber de onde vem o que chega ao meu prato.
O William, do Duilio Meliponicultura falou sobre abelhas, sua história e a produção de mel. Em algum ponto de sua apresentação eu perdi um pouco o foco porque minha mente fez a viagem de volta, o êxodo reverso e assistiu a cada passo que nos trouxe até aqui.
Na edição do Orgânico que marcou nossa chegada a esta cidade, eu mencionei diversos nomes. Nos dois últimos finais de semana, tive a oportunidade de me sentar à mesma mesa que eles e ainda alguns outros novos nomes e, de fato, ouvi-los de um jeito que, àquela época, ainda não havia espaço simplesmente porque ainda não era hora. Mas agora é e é só o começo. A colheita começa somente agora.
Café da tarde: meu lar é onde eles estão
Não posso deixar de falar sobre este final de semana sem falar sobre o café da tarde que, aos domingos, costuma invadir a noite e nos poupa do jantar porque já ficamos suficientemente alimentados pela presença um do outro ao redor da nossa nova mesa. Minha mãe, meu pai, meu padrasto, meu companheiro, meu irmão e eu passamos algum tempo dando boas risadas, contando histórias e, simplesmente, contemplando a graça que é estarmos bem e juntos uns dos outros.
Sobre a mesa, estavam uma deliciosa focaccia e cinnamon rolls incríveis do Pão do Zanin e partilhamos o café especial de torra média aromático e saboroso do Poli Alimentos Artesanais.
Muita gente aconteceu neste final ao meu redor. Muita coisa aconteceu sobre a terra nos últimos dias e, apesar do calor que é apenas reflexo do colapso climático que estamos vivendo, estamos bem. E estamos tentando reduzir os danos mudando os hábitos, fazendo arte, escrevendo, escutando, amando e rindo até perder o fôlego.
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O Orgânico é uma newsletter mensal que não tem regularidade nenhuma, mas tem como propósito falar sobre comida de verdade, limpa e acessível sem a influência dos algoritmos. De vez em quando, eu apareço aqui. E pretendo aparecer mais, agora que chegou a hora de colher.
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