Estou aqui de novo. Quem é capaz de dizer por quanto tempo ou até quando? Eu, particularmente, não sou. Tento me convencer, a cada vez que me sinto um pouquinho culpada por não ser tão regular quanto gostaria – ou nem um pouco regular –, de que a ideia inicial dessa newsletter era que fosse uma coisa lenta, sem cobranças, sem pressa, afinal é assim que funcionam as coisas debaixo da terra, até que despontem na superfície como brotos que um dia serão flores ou árvores. Demora e é preciso paciência. Também preciso de um pouco de paciência comigo e com os meus processos.
Né?
Comecei a escrever esse texto em uma segunda-feira em junho e só concluí agora. Isso sim é um texto de fermentação lenta. Na verdade, a ideia era, lembro agora, um texto de liquidificador, para ficar pronto rapidinho, como o pãozinho que aprendi a fazer aqui em casa, retomando as minhas tendências de escrita nutridas desde bem cedo, mas aconteceu que não foi bem assim.
Esse ensaio é bastante pessoal e significativo. Falo sobre como deixei meu companheiro entrar na cozinha e como esse espaço passou a ser nosso e não mais só tão meu. Como sempre, vai muito além da comida.
Não reparem a bagunça.
Se você recebeu esse e-mail de outra pessoa e ficou interessade, considere se inscrever e continuar recebendo esse conteúdo Orgânico.
Cozinha para (nós) dois
Na manhã desta segunda-feira, com a cabeça, como sempre, fervilhando, decidi, sem planejamento algum, colocar algumas palavras sobre esta tela em branco – esquecendo de tudo o que aprendi sobre deixar um texto crescer em fermentação lenta e colocando em suspensão por um tempinho (prometo) as minhas obrigações para hoje.
Não me orgulho nem um pouco do total abandono em que se encontra essa newsletter, principalmente depois de toda a expectativa que criei – comigo mesma – em relação a ela e o que poderia ser. Todos os blogs que tive ao longo da vida (foram muitos, sou um pouco obsessiva e tenho dedos nervosos desde o início da adolescência) funcionaram desse jeito: sem prazos, previsões, com textos que germinavam e brotavam tão espontaneamente quanto aquilo que chamam de erva-daninha, quanto o boldo do meu canteiro, as bananas no terreno ao lado da nossa casa. De um jeito bem orgânico.
Mas não é sobre mim, sobre meus blogs, meu processo de escrita ou sobre a newsletter em si que eu vim falar sobre aqui hoje. Apareci para falar, evidentemente, de comida. Quando o Orgânico brotou em mim, após um cuidado precioso com a terra, pensei muito sobre um assunto específico que, este sim, tem muito a ver com a minha personalidade: meu lugar, posição e domínio sobre o espaço da minha cozinha.
Poucas coisas me irritam na vida. Além das óbvias, como preconceito, opressão, injustiça, o atual governo, os preços dos alimentos, faltas marcadas sem razão contra o meu time (ok, não são poucas), eu costumava ficar um pouquinho fora de mim quando outra pessoa tentava ocupar o meu lugar na cozinha ou palpitar meu jeito de fazer algo, tipo cortar cebola ou o momento de colocar sal no arroz. O fim, para mim, era quando alguém simplesmente tirava os utensílios das minhas mãos e dizia “pode deixar que eu faço. Vai descansar”, ou, pior, fazia isso sutilmente, ocupando a boca do fogão, misturando o molho do macarrão e acrescentando os próprios temperos!!!!!
Em “Pense no garfo”, Bee Wilson fala sobre o caminho até que as panelas e frigideiras se tornassem as panelas e frigideiras que conhecemos, como as primeiras permitiram cozinhar alimentos com água, o que tornou possível a ingestão de diversos vegetais, que, sem a cocção eram indigestos, tóxicos ou simplesmente duros demais para mastigar. A autora menciona William Verral, um chef de cozinha de meados dos anos 1700, que era dono de uma pousada no condado de Sussex, na Inglaterra e que “não tinha a menor paciência com as cozinhas que tentavam arranjar-se com ‘uma pobre e solitária panela de guisados’ e uma única frigideira”.
Wilson também cita Verral dizendo que “Para ele, era óbvio que ‘não se pode dar a um bom jantar uma aparência bonita e arrumada sem (muita atenção aqui) os utensílios adequados para prepará-lo’”, e o que mais me marcou, porque esse William estava muito certo e ninguém jamais me entendeu como ele, que “conta a história de ‘metade de um jantar de alto luxo’ que foi inteiramente estragado ‘pelo uso equivocado de apenas uma panela’”.
O que significa algo que, há pelo menos seis anos, tento dizer com carinho: existe uma função certa para cada utensílio. As panelas de Verral, sim, mas, gosto de dar uma importantíssima ênfase às facas. Quando saí da casa do meu pai e me mudei para São Bernardo, ganhei um jogo de facas da Tramontina da minha amiga. Um faqueiro simples, padrão, acompanhado por um encarte que mostrava a função de cada uma das facas. A primeira coisa que minha amiga disse quando o presente chegou à minha casa foi: “depois de cortar tomates com a faca de tomates você vai se questionar como você cortou tomates até agora”, e ela não podia ser mais certeira.
Uma faquinha curva, com um serrilhado tão minúsculo e perfeitamente capaz de romper a fina casca dos tomates de um jeito, com uma simplicidade, que as demais facas (que têm cada uma a sua função) jamais conseguiriam. Também é perfeita para as berinjelas e os pimentões.
Até aí tudo bem. Até que, um dia, durante um jantar com os meus amigos, um deles tentou cortar pão com faca de fatiar legumes. Com toda a educação que meus pais me deram (eles que não me contradigam), disse que aquela não era a faca correta para aquele fim. E, obviamente, aquilo virou piada e poucos, ainda hoje, concordam comigo sobre cada item dentro de uma cozinha dever cumprir somente com seu papel.
Um dia, comecei a dividir a vida com outra pessoa, e a vida incluía a cozinha – quem diria? Não sei qual foi a faca, mas ele não usou para cortar o que devia ser cortado com ela. Nesta ocasião, talvez esteja errada, mas lembro que foi apenas uma bronca, uma chamadinha de atenção, que o erro não se repetisse. Gerou incômodo, presumo, e a pergunta “pode usar essa faca para cortar isso?” se tornou uma constante.
Ele logo foi notando meu desconforto com o compartilhamento do espaço da cozinha, salvo nas ocasiões em que eu mesma propunha que cozinhássemos juntos. Dava certo, bem certo, embora os conflitos internos fossem bastante duros. Desde o início, meu companheiro assumiu a responsabilidade pelo feijão e pelo arroz. Não tinha como ser diferente. Desde o dia em que provei Não nego que eu já o repreendi algumas vezes por alguns hábitos trazidos de casa, e assumo o erro, principalmente porque aprendi que, na cozinha, a mudança de repertório é fundamental.
E, um dia, e esse é exatamente o ponto a que eu queria chegar aqui, eu percebi, naturalmente, que, além da obviedade de compartilharmos aqueles 65m² de apartamento, aquela cozinha era um espaço nosso – que lá cabíamos nós dois.
Foi suave e sutil. Não foi uma epifania, um insight, não explodiu minha mente. Nós, juntos, tomamos a decisão de cozinhar juntos, organizar nossas refeições semanais, congelar recipientes para cada almoço. Compramos um livro da Rita Lobo que tem justamente a proposta de ensinar casais a cozinharem juntos, e isso foi um enorme passo para que eu não cedesse ou deixasse que fosse tomado o meu território, mas entendesse que não era eu: éramos nós; que nada era meu, mas nosso.
Durou pouco a determinação em manter a regularidade da organização semanal – pela instabilidade desta newsletter, já deu para perceber que talvez esse não seja o meu forte – e logo paramos. Mas segui entendendo aquele lugar como um ambiente compartilhado, já tinha assumido que meu domínio havia caído, me despi da centralização sobre o espaço da cozinha.
Mais recentemente, adotamos novamente esse hábito, agora com mais compromisso e determinação, o que tem sido ótimo em vários aspectos, principalmente para a nossa saúde e para evitar o desperdício de comida.
Eu fiz um planejador de refeições há alguns meses no Canva. Coloquei uns desenhos de panela nos cantos e inseri o título “Comer bem & feliz” no centro. Imprimi e coloquei na porta da geladeira com imãs coloridos.. Ali, às quintas-feiras à noite ou às sextas pela manhã, montamos nosso cardápio para a semana. Discutimos o que queremos comer, como distribuiremos as refeições.
Também na sexta de manhã, saio com meu pai para fazer as compras (a enorme vantagem de ser freelancer e trabalhar em home office) com base nos pratos que decidimos comer na semana seguinte – o que também é excelente para evitar os gastos desnecessários no mercado, embora não torne a experiência de ir às compras semana após semana menos traumatizante nesse Brasil de 2022.
Os domingos à noite, que antes eram sem graça e angustiantes – quem não sofre de domingueira? – agora contam com esse delicioso ingrediente. Esse momento que temos, nós dois, na cozinha de casa, dividindo tarefas, etapas e sabores. Depois que a mistura (somos paulistas, desculpem. Podem chamar de acompanhamento) está pronta, cabe ao Carlos finalizar o feijão e a mim a tão satisfatória missão de experimentar.
Então, distribuímos as comidas nos potinhos que serão congelados e, dia a dia, descongelados para o nosso almoço. Ao final de cada mês, com o calendário completo, nós dois temos um sentimento muito gratificante ao ver que conseguimos mais uma vez.
Para mim, isso significa muito mais do que ter uma rotina e manter as coisas organizadas. Como tudo o que tem a ver com comida, significa cuidado. Quando escolhemos o que comer na semana seguinte – e eu tenho plena consciência de quão gigante é o privilégio de ter condições de fazer isso –, quando eu volto com as compras, as armazeno nos armários e geladeira, lavo as verduras e os legumes, quando fazemos cada preparação, dos acompanhamentos ao arroz e feijão e, por fim, organizamos os potinhos, estamos fazendo muito mais do que simplesmente cozinhar: estamos cuidando um do outro.
Além disso, o significado de dividir o espaço da cozinha com o meu companheiro também é enorme. É a sensação de que eu encontrei a pessoa certa, em quem eu confio o suficiente para partilhar esse local e com quem eu me sinto confortável o bastante para estar junto bem ali.
Porque sabemos respeitar os processos um do outro, os espaços e as neuras. Recentemente descobri que ele ainda acha um pouco fresco da minha parte as regras quanto ao papel de cada faca, mas, mesmo assim, ele entende e respeita.
No fim, é novamente muito mais do que comida. Nesse caso, é companheirismo e saber que é isso o que eu posso, quero e amo chamar de lar.
Veja também
Recomendações para todos os gostos
A Elaine de Azevedo publicou uma edição do podcast Panela de Impressão sobre Neorruralismo. Não podia ter me identificado mais, uma vez que esse fenômeno tem bastante a ver com o êxodo urbano e com a nossa trajetória de volta ao interior, sobre a qual eu falei em outra edição desta newsletter.
Para quem gosta de futebol e segue os principais campeonatos nacionais e internacionais, recomendo acompanhar o meu companheiro, Cadu Bertin, no Twitter. Ele fala sobre o esporte com muita sabedoria e responsabilidade. E tem uma coisa que dá um saborzinho a mais para o seu trabalho, que é o amor pelo assunto. Isso torna tudo mais leve e muito mais gostoso!
Ponto Nemo, a newsletter do Arthur (segredo, mas ele é o meu amigo que usou a faca errada) está quase completando um ano, está de casa nova e acaba de entrar na segunda temporada. Ele tem falado lá sobre vários assuntos legais. Nesse tempo, escreveu sobre fungos e sobre livros. Agora, falará sobre sonhos. Recomendo muitíssimo a leitura.
A Carol Garofani agora também tem uma newsletter! A Caramelo sem drama tem o objetivo de trazer a sabedoria sobre os alimentos para a nossa mesa. Ela já deu dicas de livros, falou sobre enganações da indústria e sobre bolos artificialmente fofinhos. Vale muito a pena conferir (e aí ficar irritado toda vez que vir um bolo rosa demais para ser um red velvet de verdade, por exemplo).
Apoie o Orgânico
O Orgânico é uma newsletter mensal que tem como propósito falar sobre comida de verdade, limpa e acessível sem a influência dos algoritmos.
É um trabalho totalmente independente, ou seja, sem patrocinadores. Caso sintam vontade, podem contribuir com umas moedinhas me enviando um PIX para a chave nilamaria12@gmail.com
Onde me encontrar?
Instagram: @nilamaria_
Twitter: @nilapicarelli
Outros canais: https://www.linktr.ee/NilaMaria
Gostou? Compartilhe!